Neste final de semana fomos surpreendidos pela veiculação, na imprensa material e virtual, de
um fato ocorrido na França: a mãe de Vicent Humbert, tetraplégico, cego e mudo, desafiou a lei
vigente e provocou a morte do próprio filho. Em resumo, o francês, que tinha ficado inválido após
um acidente de carro ocorrido em 2000, há três anos suplicava para que fossem ignoradas as
leis que proíbem a eutanásia no país, morreu dois dias depois de ter recebido uma overdose de
sedativos injetados pela própria mãe.
Clinicamente, a eutanásia (cuja origem, grega, denota "morte apropriada" ou "boa morte") foi
proposta pela vez primeira em 1623, por Francis Bacon, como o "tratamento adequado às
doenças [ditas] incuráveis". A eutanásia consiste, então, na abreviação da vida (humana ou
animal), em razão da impossibilidade de vencer as doenças, antevendo a total impotência em
conferir, ao paciente, uma vida digna e saudável. Somente no estado americano do Oregon sua
prática é autorizada pela legislação, podendo o médico prescrever drogas legais para determinar
o fim da vida do paciente, uma espécie de "suicídio assistido", embora, legal e doutrinariamente,
no Brasil, haja diferenças na tipificação criminal a eutanásia é o ato de causar deliberadamente ?
ação direta ? a morte de um paciente, enquanto a assistência ao suicídio é a prestação de
qualquer auxílio material para que a própria pessoa se mate. Ambas são condutas antijurídicas
em nosso país. Recentemente, a Holanda e a Bélgica aprovaram a prática, disciplinando as
formas de sua execução autorizada. O Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal
de Medicina, n.1.246/88), por exemplo, pontua: "O médico deve guardar absoluto respeito pela
vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos
para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano, ou para permitir e
acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade" (Art. 6º, grifos nossos). E,
seqüencialmente, é-lhe vedado "Fornecer meio, instrumento, substância, conhecimentos ou
participar, de qualquer maneira, na execução de pena de morte" (Art. 54). Assim, para a lei
nacional (Código Penal ? Decreto-Lei n. 2.848/40, art. 121, § 1º c/c art. 56, III, "a"), a eutanásia é
crime de homicídio privilegiado (piedoso), motivado por relevante valor moral, objetivando eliminar
o sofrimento (dor) ou abreviar a agonia (angústia) daquele que não tem nenhuma chance de
sobrevivência, por ser portador de moléstia incurável, ministrando-lhe uma morte rápida, "doce",
ou "serena".
Do ponto de vista jurídico-social, então, aquela mãe que sofre com o sofrimento do filho
(sem nenhuma redundância), acha-se suficientemente impelida a agir com a necessária e
relevante motivação de que fala a lei, em razão do apreço, estima e importância que dá à
condição de dignidade da vida de seu filho, que, no seu entender, não se acha plenamente
satisfeita. Efetivamente, na prática, os governos e os órgãos jurisdicionais agem com tolerância
em relação à maioria dos casos verificados. A interpretação dos juristas vem ao encontro do
axioma de que "está-se fazendo o melhor por um doente em estado terminal, aquele ao qual a
ciência esgotou todos os recursos, sem conseguir recuperá-lo, devolvendo-lhe a plenitude da
saúde". Embora não se tenha um "roteiro" para a prática da eutanásia ? até em virtude de sua
ilegalidade, na imensa maioria dos países ? há um procedimento técnico para garantir a isenção
do profissional médico (ou, até mesmo, do leigo que a venha praticar ? como é o caso do fato
trazido a comento). O paciente ? ou o seu responsável direto assina um termo (declaração
autorizativa), ou, se impossibilitado a assinar, declara o mesmo às pessoas mais próximas, que o
reduzem a termo. Em regra, o paciente tem que estar acordado e consciente; tem tempo para
despedir-se da família, e praticar os "atos de última vontade"; é-lhe aplicada uma (over)dose de
medicamentos, de modo intravenoso, resultando-lhe um adormecimento, não sendo a morte
imediata. O profissional médico permanece ao lado do paciente até o instante definitivo da morte.
No aspecto espiritual, em decorrência da interpretação da filosofia espírita, há completa
desaprovação à prática da eutanásia, porque se consideram: 1) a intervenção (indevida) de
alguém em relação à vida ? bem espiritual pleno, que somente Deus pode "abreviar" ? importa
infração às leis divinas por parte daquele que executa o ato ou concorre para o mesmo;
2) a desistência, do paciente, em continuar vivendo significa renúncia às provas/expiações a
que acha-se sujeito (interrupção da depuração espiritual), implicando numa forma de suicídio;
3) Além do interesse em "minorar" o sofrimento alheio, visa-se, também, "diminuir" o sofrimento
próprio ? no caso de parentes da vítima, que não desejam mais "ver" a angústia e a dor de seu
ente querido, representando, assim, motivo egoístico. (Vide quesitos 953, "a" e "b", de O livro dos
espíritos.) Ampliando um pouco mais o espectro de nossa análise, podemos dizer que a
eutanásia, embora configure delito espiritual, pelos motivos retro-expostos, deve merecer de nós
uma maior atenção, no sentido da não-censura, de nossa parte, a quem tenha decidido assim agir.
O grau de "perturbação" e de "necessidade" de alguém que opta por tal decisum não merece de
nossa parte qualquer tipo de julgamento ou censura. Cada um de nós é julgado pela lei da
consciência e os instrumentos espirituais de reparação de (possíveis) erros, atingem
inexoravelmente a todos e representam, na práxis, a realização da lei de causa e efeito, embora
não na errônea percepção de que "aquilo que provocamos" terá como refluxo "a mesma
circunstância, ou resultado, a nós imposta". Numa palavra, aquele que pratica a eutanásia
(ou o suicídio, ou o homicídio, ou a agressão) não terá de, necessariamente, pela via do resgate,
"penar", sofrendo em si a eutanásia, o homicídio, as agressões... A "Contabilidade Divina" permite
e instrumentaliza, meritoriamente, a substituição (permuta) do mal pelo bem, sendo os erros ou
crimes por nós cometidos reparados em termos de construção, de realização, de trabalho e
resignação, sempre positivamente. No aspecto psicológico, por fim, vale uma importante
consideração. Se não temos o "direito" de apontar o dedo ao companheiro que tenha praticado
a eutanásia ? como no caso noticiado pela imprensa, que já recebe, inclusive, inúmeras
manifestações de solidariedade, piedade e apoio, pelo mundo afora ? igualmente temos de nos
preparar adequadamente ante a possibilidade de virmos a presenciar e conviver com doentes
terminais, no núcleo de nossas relações, aos quais a medicina convencional não antevê
melhoras ou saídas, porque, em verdade, amanhã ou depois, poderemos vir a presenciar o
sofrimento e a agonia dos nossos mais caros, no exato cumprimento de suas oportunidades /
experiências. Ante o desespero que possa nos dominar, guardemos o preparo (vigiai) e a
serenidade (orai), para a conveniente e necessária conscientização de nossos espíritos,
evitando o cometimento de atos que venham prejudicar àqueles a quem dirigirmos a prática
da eutanásia, e a nós mesmos, em virtude de nossa incapacidade de lidar com nossos
sentimentos. E, que, neste sentido, nosso esforço de entendimento e prática espirituais possa
ser secundado pelo apoio dos Bons Espíritos.
Marcelo Henrique Pereira *
* Delegado da CEPA para a Grande Florianópolis.
Diretor Administrativo da Associação Brasileira de Divulgadores do
Espiritismo.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
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